Dando continuidade ao post anterior, no qual comentamos sobre o excesso de horas extras nas empresas brasileiras, gostaria de convidar a refletir sobre os reais motivos que fazem com que tenhamos esta “doença do trabalho”!
Para isso convido a analisar um artigo elaborado pelo Fernando Henrique da Silveira Neto, o nome do artigo é convidativo: “O Campeão de Horas Extras”. Abaixo segue a primeira parte deste instigante assunto:
São nove e meia da noite e estou dobrando à direita na Paulista, saindo da Pamplona. Acabei de jantar e vou pegar a sessão de cinema das dez logo adiante. Enquanto percorro a avenida, lembro-me de Tom Jobim, que, parafraseando Fernando Sabino, dizia que a melhor visão que se podia ter de Nova Iorque era de maca! Sem ter uma maca à mão naquele momento, olho para cima para melhor apreciar os belos edifícios da Paulicéia e vejo muitos escritórios acesos, gente circulando com papéis na mão, salas com reuniões em andamento e a mesma cena se repetindo a cada novo prédio. Estou indo para o cinema, mas parece que já estou assistindo ao curta-metragem que antecede o filme principal. Um curta meio chato e repetitivo.
Comecei então a especular sobre que título dar ao curta ao vivo a que eu estava assistindo naquele instante. Que tal O campeão de horas extras, ou Vai trabalhar vagabundo II, ou 14 horas diárias de emoção, ou ainda Será que meu chefe já foi embora? Finalmente cheguei no cinema para assistir ao Buena Vista, bem mais interessante do que aquele curta que passa todas as noites na Paulista.
Até gostei de brincar com o assunto, mas ele é bem mais sério do que isso. Em seu recente livro O Futuro do Trabalho – Fadiga e ócio na sociedade pós-industrial, Domenico De Masi lembra que, antigamente, quanto mais rica, menos a pessoa trabalhava. Podia se dedicar a si, à família e aos amigos. Hoje, quanto mais rico, mais o homem trabalha. E não tem tempo para si próprio, para a família e muito menos para os amigos.
Por quê? Por que tanta gente trabalhando depois do expediente, lamentando-se que não consegue jantar fora, nem conversar com seus filhos, nem ir ao cinema de vez em quando? Por que há pais trabalhando até dez da noite, enquanto seus filhos estão desempregados?
São as exigências do mundo globalizado e de competição acirrada, dizem uns. É a busca de maior produtividade depois da reengenharia, que mandou metade do pessoal embora, dizem outros. É devido ao período de grandes mudanças pelo qual a empresa está passando no momento (argh…).
Pois eu digo que não é nada disso. Ao serem analisados com mais sensatez e sinceridade os reais motivos que levam as pessoas a ficar no trabalho depois do horário, não é difícil descobrir vários deles. Eis alguns:
- Ausência de outros interesses na vida. Quantas vezes já fiquei surpreso numa conversa com a falta de interesse ou conhecimento de certas pessoas por outra coisa que não fosse seu trabalho. Teatro, cinema, viagens, livros, música, amigos, nada disso fazia parte do repertório delas. Aliás, minto: futebol alguns conheciam bem. Já basquete, vôlei, tênis, natação, atletismo…. Pessoas assim não precisam nem querem chegar em casa cedo. Para fazer o quê? Para ligar o computador e continuar trabalhando? O pior é que muitas delas medem os outros por si próprias e, se são gerentes e diretores, seguram seu pessoal até mais tarde, pois assim pelo menos vão ter companhia no escritório. E que tal disfarçar isso usando seu poder e convocando uma reunião de revisão de metas para as oito da noite?
- Valorizar o fato de estar trabalhando em vez de resultados obtidos. Em muitas empresas, é comum se ouvir um já vai? Quando se sai no horário. Por que ninguém diz que bom para você, já terminou seu trabalho. O fato é que muitos até são eficazes, mas, por medo de sair no horário, ficam além do expediente para não serem vistos como não cooperativos ou não engajados no esforço de toda a equipe. Resultado: a saída se dá na hora em que o mais ineficaz da equipe termina seu trabalho ou está tão cansado que já não diz coisa com coisa e resolve ir embora. Assim, estão mantidas as aparências, ninguém destoa no time e a equipe parece coesa.
- Falta de respeito pelo outro. Em frente à escola de seu filho há uma fila dupla de carros despejando crianças (é bom lembrar que elas estão num período de aprendizado), você reclama e não vê outra solução senão inaugurar a fila tripla para largar seu pimpolho. No metrô, os assentos destinados a gestantes e idosos estão cheios de rapazes e moças de cabeça baixa (ou fingindo cochilar), esperando para ver se aquela velhinha que entrou agora senta num lugar cedido por alguém que não eles. No supermercado, você aperta todos os pães com a mão que acabou de pegar garrafas de refrigerante para verificar os que estão mais frescos. Na fila do banco, torce para não chegar mais nenhuma pessoa de idade e ser logo atendida (e quando você for uma delas?) Por que então abrir exceções e respeitar o tempo dos outros?
- Desestruturação ou desorganização dos processos e métodos pessoais de trabalho. Gosto de visitar o local de trabalho dos outros: sua mesa, sua tela de computador, seus arquivos e pastas. Quantos poderiam gastar metade ou 1/3 do tempo que gastam hoje se ao menos fossem mais organizados e disciplinados com essas coisas? A carteira de habilitação está vencida. Estão sempre no cheque especial, pois as contas estão em débito automático e o saldo vive negativo por falta de verificação periódica. E é claro que no trabalho o ritmo é o mesmo: virada hoje e amanhã para entregar aquele trabalho que ficou esquecido desde a semana passada e que está sendo agora cobrado com urgência pelo cliente (como é que eu fui esquecer logo disso, meu Deus?) Para quem gosta de adrenalina….
- Crença nos valores da sociedade industrial em plena era pós-industrial. É bom lembrar novamente De Masi dizendo que com a revolução industrial, veio a migração para as cidades em busca de emprego, pois as indústrias eram rudimentares e absorviam muita mão-de-obra. E, para produzirem mais, os operários enfrentavam jornadas estressantes de 14 a 15 horas diárias. Mas na primeira metade do século XX o advento de técnicas científicas de gestão e de produtividade fez aumentar o volume produzido, diversificou a oferta e melhorou a qualidade dos produtos. E, na segunda metade daquele século, a eletrônica e a informática se incumbiram de ampliar tudo isso de forma mais limpa, mais rápida, mais barata e miniaturizada, e principalmente com muito menos gente trabalhando. Mas tem gente que ainda acha que trabalho e resultados devem representar também suor e muita carga horária.